E Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto; E quarenta dias foi tentado pelo diabo, e naqueles dias não comeu coisa alguma; e, terminados eles, teve fome.
E disse-lhe o diabo: Se tu és o Filho de Deus, dize a esta pedra que se transforme em pão.
E Jesus lhe respondeu, dizendo: Está escrito que nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra de Deus
Lucas 4:1-4
E o diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o diabo: Dar-te-ei a ti todo este poder e a sua glória; porque a mim me foi entregue, e dou-o a quem quero. Portanto, se tu me adorares, tudo será teu. E Jesus, respondendo, disse-lhe: Vai-te para trás de mim, Satanás; porque está escrito: Adorarás o SENHOR teu Deus, e só a ele servirás.
Lucas 4:5-8
É possível se fazer várias especulações sobre esse figura do mal “encarnado” no Diabo. Para Raul Seixas, por exemplo, o diabo é o pai do rock! Para os padres católicos da idade média, entretanto, a sensualidade das mulheres, tão essencial à vida humana, tinha algo de diabólico, tentador, digno de ser queimado na fogueira. Para Nietzsche, por sua vez, o Diabo é o mais velho amigo do conhecimento, porque ousa desafiar as certezas da vida e mergulhar no abismo das dúvidas. Vamos então dar uma olhada no Diabo, esse nosso velho amigo, ainda que de modo impreciso e arriscado.
O diabo como divindade
Feuerbach afirma que as representações e segredos atribuídos a seres sobre-humanos não são mais do que representações humanas naturais. Para ele consciência de Deus é a consciência de si do homem, uma espécie de projeção em outra figura daquilo que somos. “o homem possui uma vida interior, é a vida relacionada com seu gênero, com sua essência, o homem pensa, ele conversa, fala consigo mesmo” (cf. Feuerbach, p.44), Como o Diabo (Satanás) é um espécie de ser sobre-humano, não custa arriscar que o diabo é também o “mal” que vive dentro do homem, uma espécie de potencial para fazer coisas moralmente reprováveis e que é objetivado, melhor dizendo, colocado para fora como um ser estranho, porque só assim podemos enxergá-lo melhor.
Usando agora uma terminologia de Hegel, não é o mal efetivo, o mal que realiza o seu potencial, mas somente a semente do mal em um estágio, por assim dizer, de letargia. Porém nós não permitimos que esta semente do mal saia do seu estado de concentração, não deixamos que ela floresça no espaço e no tempo e se entregue ao nosso livre arbítrio, exatamente porque não existe lugar em nosso mundo para expressar essa maldade em todo o seu potencial devido, quem sabe, a interdições morais bem conhecidas. Observe que isso não é sem custo: o mal fica represado dentro de nós, talvez como fonte de angústia, porque é uma potência, alguma coisa que, podendo se realizar, é mantido em si mesmo, como um rebelde entre grades, um guerreiro “bárbaro” acorrentado. Podemos, apesar disso, e como acontece no mundo real, encontrar atalhos e desvios, sublimar em expressões mais “elevadas” ou transviar essa maldade e ocultá-la em expressões aparentemente mais inofensivas.
É o caso, por exemplo, de pessoas que, não encontrando expressão aceitável ao ódio que sentem pelos próprios pais, ou por quaisquer outras pessoas a quem atribuem grande autoridade e poder, agridem violentamente as mulheres, negros, nordestinos e homossexuais. Outros, de maneira menos óbvia, passam a agredir moralmente outras pessoas por motivos mais banais, como gosto musical, diferenças de idade, origem social etc.
Quais seriam as raízes do mal?
Roy Baumeister, psicólogo da Florida State University, considera que há quatro raízes do mal que configuram o fundamento do ódio: a convicção de que a própria posição é boa e de que as outras são más, o desejo de vingança pelas injustiças e humilhações sofridas, a avareza e o sadismo.
Por sua vez, Robert J. Sternberg, professor de psicologia e decano da Faculdade de Artes e Ciências da Tufts University (Medford, Massachusetts), elabora, em The Nature of Hate, uma das teorias mais completas e atuais sobre o tema. Na sua opinião, o sentimento possui três componentes fundamentais: a negação de intimidade, a paixão e o compromisso.
O primeiro, a negação de intimidade, implica manter à distância o indivíduo que nos provoca repulsa, a qual pode decorrer das suas características pessoais, das suas ações ou de uma campanha de propaganda destinada a mostrá-lo como um ser infra-humano, incapaz de albergar sentimentos de proximidade e que não merece, pois, compaixão nem respeito. Esse distanciamento criado por um aparelho propagandístico pode permanecer latente durante décadas para, depois, se ativar novamente e reaparecer na forma de vingança. No Ruanda, os hutus e os tutsis conviveram em relativa paz durante muitos anos. De súbito, uma campanha lançada contra os segundos fez a harmonia degenerar em chacinas e genocídio.
Como estamos especulando, poderíamos acrescentar dizendo que o mal, como ódio, é a reação ainda infantil do indivíduo que não alcançou aquele estado considerado como o de maturidade, qual seja, a capacidade de aceitar um “não” da realidade. Os seus desejos continuam infantis, sem limites, ele não consegue absorver o “não” que lhe vem de fora como algo de seu, integrar e conciliar a contradição entre os seus próprios desejos e a sua capacidade limitada de satisfazer esses desejos. Já o mal, como pecado da carne, é aquela tentativa de satisfazer os próprios desejos fora das prescrições ditadas pelo costume, como, por exemplo, fazer sexo fora do casamento ou com pessoas do mesmo sexo ou muito jovens, com parentes próximos ou animais, o que parece reduzir o mal, de qualquer forma, à essa incapacidade do indivíduo de conciliar a contradição entre eu e não-eu em uma síntese superior. Seria tedioso listar todos os males, incluindo os políticos, mas é suficiente dizer que o que entendemos como mal tem certamente um caráter histórico e social.
O diabo como projeção do “eu”
Esse tipo de projetar para fora, segundo Freud, é um mecanismo de defesa psicológico em que determinada pessoa “projeta” seus próprios pensamentos, motivações, desejos e sentimentos indesejáveis numa ou mais pessoas. Para alguns psicanalistas e psicólogos trata-se de um processo muito comum que todas as pessoas utilizam em certa medida. Peter Gay define projeção como “a operação de expulsar os sentimentos ou desejos individuais considerados totalmente inaceitáveis, ou muito vergonhosos, obscenos e perigosos, atribuindo-lhes a outra pessoa.”
Para explicitar a manifestação da projeção, a teoria psicanalítica ampliou o sentido e definição do conceito, concebendo-a como uma operação na qual o sujeito expulsa de si e localiza no outro, pessoa ou coisa, as qualidades, os desejos, os afetos, os sentimentos e até mesmo os “objetos” que estão internalizados e ele desdenha e/ou recusa aceitar e/ou admitir que lhe são pertencentes.
Para justificar a existência dos eventos por eles produzidos, o indivíduo desloca-os para alguém ou alguma coisa que esteja fora, realizando uma ação projetiva.
Fontes: